O Atharvaveda (AV) é um dos quatro Vedas ou livros sagrados do hinduísmo, mas a sua aceitação não é pacífica por todas as religiões que adotam os Vedas como base religiosa.
Algumas religiões como o Budismo e o Jainismo posicionam-se contra o conteúdo deste quarto e polêmico sutra.
1. Por que o Atharvaveda é mal visto?
A. Perspectiva Hindu (Brahmanismo Ortodoxo)
O Atharvaveda (AV) é diferente dos outros três Vedas (Rig, Yajur, Sama) por seu conteúdo “não védico” aos olhos da ortodoxia:
Conteúdo “Impuro”: Enquanto os outros Vedas focam em hinos devocionais (suktas) e rituais de fogo (yajna), o AV inclui:
Feitiços (abhicāra): Para maldições, destruição de inimigos, controle de mentes.
Magia prática (bhṛtya): Rituais para cura, amor, prosperidade, proteção contra demônios.
Temas “mundanos”: Saúde, sexo, gravidez, dinheiro — considerados “inferiores” pela elite sacerdotal (Brahmins).
Associação com grupos marginais: Tradicionalmente, o AV era ligado a Brahmins não-ritualistas (como os Purohitas de vilarejos) e a cultos populares fora do eixo “sacro” do Śrauta (rituais védicos clássicos).
No Manusmriti (2.1), o Atharvaveda é chamado de Brahmaveda (para elevar seu status), mas em outros textos, é relegado como “inferior”.
B. Perspectiva Budista
Os budistas (especialmente nos textos Pali) criticam o Atharvaveda por:
Promover “superstições”: O Buddha condena rituais de magia (māyā) no Brahmajāla Sutta (DN 1), associando-os a “artes baixas” (como adivinhação e encantamentos).
Ser um Veda “não-essencial”: O Tevijja Sutta (DN 13) lista apenas Rig, Yajur e Sama como Vedas “verdadeiros”, ignorando o AV.
Conflito com o Caminho Óctuplo: Rituais de controle (como os do AV) são vistos como opostos ao karma e à ética budista.
2. A Tradição Paippalāda e o Atharvaveda
O Atharvaveda sobreviveu em duas recensões principais:
Śaunakīya (mais comum, associada ao norte da Índia).
Paippalāda (mais rara e antiga, ligada ao leste, especialmente Orissa e Kashmir).
Por que a Paippalāda é especial?
Linguagem arcaica: Seu texto é considerado mais próximo do Atharvaveda original, com palavras pré-védicas.
Conteúdo esotérico: Inclui hinos ausentes na Śaunakīya, com forte ligação a:
Tantra primitivo: Rituais de poder (śakti), semelhantes aos do Yajurveda Negro.
Cultos tribais: Influências de tradições Munda e Dravidianas.
Sobrevivência milagrosa: Seus manuscritos foram redescobertos no século XX em Kashmir e Orissa, após séculos de transmissão oral secreta.
A Rejeição à Paippalāda
Escola “herética”: Por não seguir a liturgia padrão do Yajur ou Rigveda, era vista como “não-brahmânica”.
Vínculo com ascetas e xamãs: Seus praticantes eram associados a grupos Kapalikas e Pashupatas (pré-tantricos), marginalizados pelo Hinduísmo clássico.
3) – Menção a sacrifícios humanos
Outro ponto que é constante fonte de controvérsia é o mito de que algumas correntes religiosas afirmavam que o Atharvaveda mencionava e incitava a sacrifícios humanos em alguns dos seus rituais.
Vamos analisar tal posicionamento:
1. Menções de sacrifícios humanos no Atharvaveda (AV)
O AV contém hinos que podem ser interpretados como referências simbólicas ou literais a sacrifícios humanos, mas não há consenso. Alguns exemplos:
AV 5.19.9-10: Fala de “oferta de um homem” (purusha) no fogo ritual, mas estudiosos como Bloomfield argumentam que é metafórico (representando a “morte” do ego no ritual).
AV 11.1.1-7: Descreve o “sacrifício do homem primordial” (Purusha), semelhante ao Purusha Sukta (Rigveda 10.90), que é visto como um mito cosmogônico, não um manual ritualístico.
Contexto:
O AV é repleto de substitutos simbólicos: Rituais usam efígies de argila (puruṣamedha), plantas ou animais no lugar de humanos.
Fins terapêuticos/mágicos: A maioria dos rituais do AV visa curar, proteger ou destruir inimigos, não sacrificar pessoas.
2. A Tradição Paippalāda e Indícios de Sacrifício Humano
A recensão Paippalāda do AV é mais obscura e menos estudada, mas há pistas:
Fragmentos de Orissa: Alguns manuscritos da Paippalāda mencionam rituais agressivos (abhicāra), mas sem descrição clara de sacrifício humano.
Ligações com Cultos Tântricos: A Paippalāda tem afinidade com grupos Kapalikas (que praticavam rituais extremos, incluindo uso de crânios e simbologia de morte), mas isso é pós-védico (século VI d.C. em diante).
Evidência Indireta:
Arqueologia: Sítios como Gonur-Tepe (Ásia Central) e Kashmir mostram vestígios de sacrifícios humanos na cultura Harappana tardia e Bactro-Margiana, mas não há ligação direta com a Paippalāda.
Textos Paralelos: O Yajurveda Negro (Taittiriya Samhita 6.2) descreve o puruṣamedha (sacrifício humano ritual), mas como cerimônia simbólica — o “homem” é liberado no final.
3. Por que a Confusão?
Linguagem Ambígua: Termos como puruṣa (“homem”, mas também “princípio cósmico”) e medha (“sacrifício” ou “oferenda”) geram interpretações literais ou filosóficas.
Inimigos do Veda: Budistas e Jainistas acusavam os vedistas de sacrifícios humanos para deslegitimá-los (ex.: textos jainistas como o Sūtrakṛtāṅga).
4. Conclusão
Atharvaveda (geral): Não há evidência de sacrifícios humanos reais, apenas linguagem ritualística que pode ser mal interpretada.
Paippalāda: Embora mais “agressiva” magicamente, não há registros diretos de sacrifícios humanos em seus textos sobreviventes.
Cultos Posteriores: Grupos tântricos (como os Kapalikas) podem ter absorvido elementos marginais do AV, mas isso já é uma evolução medieval.
3) – Conclusão:
O Atharvaveda como “Veda Rebelde”
Para hindus ortodoxos: Era um texto “utilitário”, usado por necessidades cotidianas, mas não para “libertação” (moksha).
Para budistas: Representava o oposto da iluminação — apego a poderes mundanos.
Paippalāda: Preservou o núcleo “mágico” e tribal do AV, tornando-o uma janela para um hinduísmo alternativo.
Fontes Acadêmicas:
The Atharvaveda: Sanskrit Text with English Translation (Devichand) — análise dos hinos polêmicos.
Human Sacrifice in Ancient India (D.D. Kosambi) — discute a arqueologia e o contexto social.
The Paippalāda Samhitā of the Atharvaveda (Dipak Bhattacharya) — edição crítica dos manuscritos.
The Atharvaveda and its Paippalāda Śākhā (Michael Witzel).
The Vedic Experience (Raimundo Panikkar) — discute a marginalização do AV.
Magic and Ritual in the Atharvaveda (Alexander Lubotsky).