A Mente
“A mente sem criação artificial, é felicidade. A água sem poluição é pura”.
(Gampopa – Sec I d.C.)
“Temos uma certa noção superficial do que é a mente. Para nós, é o que experimenta o sentimento de existir, o que pensa “sou eu”, “eu existo”.
É ainda o que é consciente dos pensamentos e sente os movimentos emotivos, aquilo que, segundo as circunstâncias, tem o sentimento de estar feliz ou infeliz.
Fora disso, não sabemos o que é, verdadeiramente a mente. Talvez seja mesmo provável que nunca nos tenhamos feito essa pergunta.
A mente sente, não os órgãos.
É evidente, em primeiro lugar, que a mente não tem existência material.
Não é um objeto que se possa definir a cor, o tamanho, o volume ou a forma.
Nenhuma dessas características é aplicável à mente. Não podemos apontar a mente com o dedo, dizendo: “É isso”. Nesse sentido, a mente é vazia.
Entretanto, que a mente seja desprovida de forma, de cor, etc, não é suficiente para concluir sobre sua não-existência, pois os pensamentos, os sentimentos, as emoções conflituosas que ela sente e que produz provam que alguma coisa funciona e existe, que a mente não é, portanto, somente vazia.
Logo, o que é esse sentimento de existir? Onde ele se situa? No exterior, ou mesmo no interior do corpo? Se ele se situa no interior do corpo, quem o sente? A carne, o sangue, os ossos, os nervos, as veias, os pulmões, o coração?
Se vocês refletirem atentamente, irão admitir que nenhum membro, nemnenhum órgão reivindica sua própria existência, dizendo “eu”. Assim, a mente não pode ser assimilada a uma parte do organismo. Tomemos o exemplo do olho. O olho não proclama sua própria existência. Ele não diz para si mesmo: “Eu existo”, ou ainda: “É preciso que eu olhe uma determinada forma exterior; esta é bonita, aquela não o é; eu me apego a primeira e rejeito a segunda”. O próprio olho não tem nenhuma vontade, não experimenta nenhum sentimento, nem apego, nem aversão.É a mente que tem o sentimento de existir, que percebe, julga, se apega ou rejeita. O mesmo vale para o ouvido e os sons, o nariz e os odores, a língua e os sabores, a pele e os contatos, o órgão mental e os fenômenos.
Não são os órgãos que percebem, mas a mente.
O carro tem necessidade de um condutor Os órgãos, inconscientes por natureza, não são a mente, são como uma casa na qual se mora. Os moradores são o que se chama de consciências:
consciência visual;
consciência auditiva;
consciência olfativa;
consciência gustativa;
consciência tátil;
consciência mental.
Essas consciências não existem de maneira autônoma. Elas nada mais são do que a mente.Pode-se dizer ainda que o corpo é como um carro e a mente o seu condutor.
Quando o carro está desocupado, apesar de possuir todos os equipamentos para rodar – o motor, as rodas, o combustível, etc, – e de encontrar-se em perfeito estado de funcionamento, ele não pode ir a nenhum lugar. Do mesmo modo, um corpo desprovido de mente, mesmo que possua a totalidade dos órgãos, não passa de um cadáver. Apesar de ter olhos, ouvidos, um nariz, ele não pode ver, nem ouvir, nem cheirar.
Alguns pensarão que a morte não atinge apenas o corpo, mas também a mente: o primeiro torna-se cadáver, a segunda deixa simplesmente de existir. Mas não é o que ocorre. A mente não nasce, não morre, e não é atingida pela doença. É eterna. O que percebe as formas vistas pelo olho, os sons ouvidos pelo ouvido e os outros objetos através dos outros órgãos dos sentidos, o que é consciente, o que não é interrompido pela morte do corpo é, portanto, a mente.Como vimos, considerando-se que ela é destituída de qualquer característica material, não é possível designa-la como uma coisa visível e facilmente reconhecida, caso contrário alguém poderia mostrá-la para nós. De fato, possuindo uma mente, todos devemos consultar a nós mesmos e, guiados por um mestre, proceder a uma investigação que nos leve até a descoberta de que ela é verdadeiramente. Qual é sua forma, sua cor, seu volume? Ela está situada no exterior ou no interior do corpo? São questões que necessitam de uma resposta verificada pela experiência, mesmo se tivermos recebido previamente explicações teóricas como estas dadas aqui.
Escuta, reflexão, meditação A prática do dharma compreende sempre três etapas, chamadas escuta, reflexão e meditação.
A escuta consiste em receber ensinamentos teóricos e instruções. Seu corolário indispensável é lembrar-se com fidelidade do que foi dito ou lido.qui pertence à fase da escuta. É necessário retê-la antes de abordar as etapas seguintes.
Para descrever a mente consideramos três aspectos:
sua essência: a vacuidade;
sua natureza: claridade;
seu modo de funcionamento: inteligência.
Vacuidade
A essência da mente é ser vazia. O que significa, como já foi dito, que ela não tem nenhuma existência material. Não tem forma, cor, volume, tamanho.
É impalpável e indivisível, semelhante ao espaço.
Claridade
Todavia, a mente não é como um espaço obscuro que nem o sol, a lua ou as estrelas clareia, mas sim como o espaço diurno ou ainda como o espaço deuma sala iluminada.
É uma comparação, e apenas aproximada. Significa que a mente possui um certo poder de conhecer. Não é o próprio conhecimento, mas a claridade, a faculdade consciente, que o torna possível.
Esse poder compreende, além disso, a faculdade de produzir a manifestação. Quando vocês pensam na América ou na Índia, sua mente tem a possibilidade de fazer nascer a imagem interior desses locais.
Esse poder de conhecer e a faculdade de evocar são a claridade da mente. Graças à luz, vocês podem ver os objetos dentro da sala onde se encontram, estar conscientes da presença deles.
Graças à claridade, a mente tem, do mesmo modo, a faculdade de conhecer.
O que entendemos por claridade da mente é ligeiramente diferente da claridade no sentido comum.
Esta, de fato, permite unicamente o exercício da função visual, enquanto que a claridade da mente dá a possibilidade não somente de ver, mas também de ouvir, de sentir, de degustar, de tocar e estar consciente dos prazeres ou desprazeres do mental.
Portanto, é uma claridade cujo campo de aplicação é extremamente vasto.Inteligência sem obstrução A sala onde vocês estão sentados contém vacuidade (o espaço da peça) e claridade (a iluminação). No entanto, não é suficiente para atribuir-lhe uma mente.
Portanto, devemos encontrar um terceiro elemento de descrição.
Para que a mente exista, deve-se acrescentar à vacuidade e à claridade, a inteligência sem obstrução.
Inteligência sem obstrução:
É esta inteligência que permite conhecer efetivamente cada coisa sem confusão.
Não somente a mente tem consciência dos fenômenos – o que é a claridade – mas ela os reconhece sem confusão – o que é a inteligência. No espetáculo do que ela vê, por exemplo, ela sabe o que é o céu, o que é uma casa, o que é um homem, etc.
Sobre o suporte da vacuidade e da claridade, surge a inteligência sem obstrução. È a faculdade que identifica, avalia, compreende. É quem diz, por exemplo: “Isto é um objeto; ele é bonito ou ele é feio”, identificação que se aplica também aos sons, dos quais se percebem a potência e a qualidade, aos odores agradáveis ou repugnantes, aos sabores e suas diferentes nuanças, às experiências mentais agradáveis ou desagradáveis.
Assim, a mente é conjuntamente vacuidade, claridade e inteligência.
Uma tal mente é pequena? Não, já que possui a faculdade de fazer aparecer e de abraçar todo o universo. Então, ela é grande? Também não podemos afirmá-lo, visto que, ao sentirmos uma dor muito localizada, num local do corpo preciso, provocada, digamos por uma picada, assimilamos nossa mente a esse local minúsculo, dizendo: “Sinto dor”. Cada um identifica-se com seu corpo e a mente o penetra por inteiro: para um elefante, numa grande escala, para um inseto, numa pequena escala. De fato, a própria mente, fora de toda assimilação, não é nem pequena, nem grande. Escapa desse gênero deconceitos.
Essa mente fundamental é a mesma para todos os seres.
Caso se reconheça o seu modo de ser, neste caso ela nada mais é do que o Despertar:
a vacuidade é o corpo absoluto (sânsc. dharmakaya);
a claridade é o corpo de glória (sânsc. sambhogakaya);
a inteligência, o corpo de manifestação (sânsc. nirmanakaya).
A unidade dos três componentes – vacuidade, claridade e inteligência – é o que se chama de “mente”. É ainda o que se chama de tathagatagarbha, o potencial do Despertar. Quando os três componentes não são reconhecidos pelo que são, é o estado de ser ordinário.
A vacuidade se exprime então como mental, a claridade como palavra, a inteligência sem obstrução como corpo.
Os três componentes da mente pura se condensam nos três componentes da personalidade temporária. Pela meditação do mahamudra, a natureza verdadeira da mente é reconhecida e os três componentes se revelam como os três corpos do Despertar. Na verdade, um Buda e um ser ordinário são idênticos. Possuem fundamentalmente a mesma natureza. Um Budhha a
reconhece, um ser ordinário não. É a única diferença”.
Nota sobre o autor:
O Senhor dos Refúgios, Lama Vajradhara Kalu Rinpoche (1905 – 10 de maio de 1989), nasceu na aldeia de montanhas de Trechö, no Khan, no Tibet oriental.
Kalu Rinpoche foi um lama budista tibetano, mestre de meditação , estudioso e professor. Ele foi um dos primeiros mestres tibetanos a ensinar no Ocidente.
* Gampopa (Sönam Rinchen) foi discípulo de Milarepa (Jetsün Milarepa) Sec I d.C..
Conteúdo retirado do livro “A Mente – Clara Luz” de – Kalu Rimpoche.
Kalu Rinpoche. Luminous mind: the way of the Buda. Compilado por Denis
Töndrup, traduzido por Maria Montenegro, prefácio de S.S. o Dalai Lama.
Boston: Wisdom, 1997.